segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

COMENTÁRIO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA MÚSICA PARA KASSANDRA IN PROCESS




Para iniciar nossos trabalhos neste blog, decidimos trazer um artigo de Johann Alex de Souza publicado no livro Aos Que Virão Depois de Nós Kassandra in Process - O Desassombro da Utopia (org. de Valmir Santos, edição Ói Nóis na Memória, 2004). Neste artigo, o músico que trabalha há vários anos com o Ói Nóis comenta o processo de criação da música do espetáculo Kassandra in Process.
A foto de Claudio Etges é da cena "Portal de Micenas", onde Clitemnestra entoa seu traiçoeiro canto para Agamêmnon, que retorna triunfante, após dez anos em guerra com a cidade de Tróia.

FLAUTA INDIANA. PERCUSSÃO DE LATAS, E CD (ENTRE OUTRAS COISAS)
COMENTÁRIO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA MÚSICA PARA KASSANDRA IN PROCESS

Por Johann Alex de Souza

O primeiro ato de criação foi musicar um poema em grego. Paulina Nólibos me passou o texto, e eu ainda gravei a pronúncia de cada palavra com ela. A situação era a seguinte: uma mulher saudando o homem triunfante em sua chegada, e assim cantando para ele. Me surgiu o palpite de afinar o violão deixando respectivamente a primeira, segunda, quinta e sexta cordas todas um tom a baixo, ficando o violão com a afinação ré, lá, sol, ré, sol, e ré...


...Assim iniciou o que seria, ao longo de quase um ano, o trabalho de composição, arranjos, estruturação, ensaios, gravação, enfim a criação da música para o espetáculo Kassandra in process.


Em música para teatro, na maioria das vezes, primeiro se toma contato com a peça que será montada, depois se cria a música, e então se decide, como, com quem, e com o que ela será executada, no caso de Kassandra tudo isso foi ocorrendo ao mesmo tempo.


Em 1999 eu fui o compositor e o música de cena do espetáculo Hamlet Máquina, portanto já estava familiarizado com a linha de trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz, só que em Kassandra estava previamente definido que nem eu, nem outro músico tocaria em cena, os próprios atuadores deveriam dar conta da tarefa. Por isso pensamos na forma de trabalho-ensaio como uma grande oficina de música.


Quando se inicia um processo de criação intenso e coletivo como este nunca se sabe como será o material a ser trabalhado no próximo ensaio, mas a própria trajetória foi resolvendo e arrematando cada dilema; eu experimentava, anotava, gravava, e depois levava tudo comigo e finalizava, a proposta era apresentada no encontro seguinte, após a aceitação começávamos a pensar na concepção do arranjo, e então, os ensaios.


Após muita leitura dos textos utilizados para embasar a montagem de Kassandra, de referências sobre as personagens, e conversas com o grupo, decidimos que a sonoridade da música deveria ter elementos indianos e árabes. Passei a pesquisar o assunto, e o grupo se propôs a adquirir instrumentos genuínos por meio de importação. O citar ou cítara, o harmônio, a flauta indiana, além de uma série de instrumentos que cheguei a levar para casa para compreender como funcionavam – sempre acreditei na intervenção artística sobre o instrumento musical, independente dos “alvarás” concedidos pelas bancas da virtuosidade com o “carimbo” simplista de “sabe tocar” ou “não tem o dom”.


No caso do citar foi solicitada a ajuda de um professor especializado, o ator que iria tocar o citar em cena passou a ter aulas regulares do instrumento, algumas delas eu assisti no intuito de entender melhor a sua complexa estrutura de afinação.


Inicialmente trabalhamos sobre a forma canção. A exigência do grupo era de que o idioma utilizado não fosse o Português, para que o texto cantado contrastasse com as falas da peça. Os idiomas Grego, Maia, Alemão, e até colagens de palavras, ou mesmo invenções de línguas imaginárias, foram utilizados na criação de letras a serem musicadas. O grupo já dispunha naturalmente de um bom material humano de vozes, principalmente femininas, o que possibilitou a criação de arranjos vocais para estes temas. Para a cena da gruta compus três temas diferentes que se interligavam pelas ações e um quase mini-coral formado pelas atrizes.


Além da forma canção pensamos na possibilidade de vinhetas e temas instrumentais. Até então, o grupo não cogitava a possibilidade de gravações em estúdio para a utilização dos CDs no espetáculo, mas a medida que eu ia apresentando os motivos, viu-se a praticidade, e até o reforço de contraste com o som feito ao vivo. Isso me deu mais liberdade para pensar nas criações sem me preocupar com o grau de dificuldade que os atores iriam encontrar no momento de aprender a tocar o tema, já que no estúdio eu mesmo poderia gravar todos os instrumentos. E foi o que ocorreu em boa parte das gravações.


A parte de estúdio se deu quase no final o processo todo resultando em um CD com quinze faixas a serem operadas, sonoplasticamente, durante o espetáculo. O tema de “Mar em Fogo”, uma coreografia cênica, foi gravado com harmônio, citar, caixas de guerra e tarol desdobrados; sonoridades que, usualmente não andam lado a lado, como no tema de “Sedução e Morte de Aquiles”, gravado com citar e baixo elétrico. O tema da “Despedida do primeiro navio”, gravado com flauta indiana e percussão, aparece de duas maneiras: em CD gravado, e executado ao vivo pelos atores.


Este foi um dos detalhes que eu achei interessante no resultado final; muita música executada ao vivo e com uma boa diversidade de instrumentos, vozes, tonéis em percussão, snuges, pratos, além dos instrumentos já mencionados, e muita música gravada em CD, por mim e também com a ajuda de alguns atores do grupo, e executada por sonoplastia. E o mais importante, algo de música que nunca havia ocorrido em um espetáculo do Ói Nóis Aqui Traveiz: a junção dessas duas formas, uma base de CD tocando enquanto que ao mesmo tempo um ator executa um solo musical. Um exemplo do que eu cito está no início da peça no tema “Memória da Kassandra Menina”, quando a atriz Tânia Farias canta em cena este tema em grego acompanhada por uma base de teclado gravada anteriormente em CD.


Compor a música para este magnífico espetáculo, de um grupo que tem a grandeza e a originalidade tanto no trabalho como na biografia, me enche de orgulho e satisfação, e penso que essa linha de processo contribui tanto para atuais interações, como para futuros experimentos, que sabe, mais radicais na relação entre Música e Teatro.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Rios Grandes

Dois Rios Grandes, bem grandes. Um país enorme entre nós. Muitas horas até lá. Bastante. Quatro mil quilômetros que nos separam geograficamente de nossas práticas. E cá estou eu. Porto Alegre. Começa aqui a nossa jornada de troca entre Clowns de Shakespeare e Ói Nóis. Depois de alguns ajustes cibernéticos e celularísticos, finalmente tivemos o nosso primeiro encontro presencial para amarrarmos os detalhes do nosso projeto.
Dessa vez estou hospedado na casa do queridíssimo André Neves, autor e ilustrador do livro O Capitão e a Sereia, que originou o nosso espetáculo homônimo estreado em 2009 e que apesar de pernambucano já fincou suas raízes também em terras gaúchas. André é uma dessas pessoas especiais que o teatro nos coloca diante da nossa história.
Presenteado com um pôr-do-sol incrível às 20:15h, estava eu a esperar o ônibus que trazia o público que assistiria junto comigo o espetáculo Viúvas, do Ói Nóis. Dali, seguimos num barco que nos levou até a Ilha do Presídio, local da apresentação. O trajeto e o barco que nos conduziu eram um espetáculo à parte. Isso renovou minhas energias e escondeu o meu cansaço. Ter visto mais um espetáculo deles foi importante para entendermos ainda melhor o nosso projeto juntos. Só havia visto, como César colocou em seu post anterior, o Santo Amargo da Purificação, em São Paulo. É o bastante pra identificar o traço estético, a pesquisa, a força e a importância que eles têm na história do teatro brasileiro. Temos muito o que investigar e dividir. Isso é ótimo!!!
No dia seguinte, nos encontramos na casa da Tânia. Lá, estávamos eu, como representante dos Clowns, Paulo, Tânia e Marta, a única que eu havia trocado idéias e contatos até então. De forma bem prática e objetiva colocamos na roda as idéias que havíamos levantado entre nós em Natal e discutimos juntos a partir do que eles também haviam pensado e também conversado. Conseguimos encontrar um formato que acho bem bacana para nossos trabalhos. Questões práticas de logísticas, produção local para as atividades que realizaremos tanto em Porto Alegre quanto em Natal, seminários, formas de registro do processo, oficinas, tudo isso parece ser bem mais fácil de visualizar e definir. No entanto, apesar de ainda não sabermos qual formato adotaremos no momento em que os dois grupos estiverem em sala de trabalho, certamente será o instante em que a troca fluirá normalmente.
Optamos usar essa ferramenta (Blog) para publicizar todo o decorrer de nossos acertos virtuais até os encontros práticos. Vamos registrando aqui com detalhes as conversas que surgirem até lá.
É muito bom ver que temos em nossas mãos um projeto que potencializa muito o nosso olhar sobre o que fazemos dividindo a experiência com um grupo como o Ói Nóis.
Mala quase pronta e também bem objetiva, é hora de voltar pra casa. Até!!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

De como conheço o "Ói Nóis"

Não lembro a primeira vez que ouvi falar no “Oí Nóis”, acho que desde quando comecei a trabalhar com teatro, lá pelos anos de 1993, 94, já tinha consciência da existência do grupo, mas foi só no início de 2009 que tive a primeira oportunidade de um contato mais direto. Antes disso, em 2008, quando estava empolgado em uma pesquisa sobre gestão cultural e lendo o livro “O Avesso da Cena” de Rômulo Avelar, me ative com interesse ao capítulo em que abordava formas de organização coletiva e o "Ói Nóis" era exemplo de administração planificada, diferenciando-se dos modelos vigentes. De volta a 2009, abril mais precisamente, nós dos Clowns estávamos fazendo uma residência para intercâmbio em Salvador, no “Teatro Vila Velha”, com a “Outra Companhia de Teatro”. Lembro que em uma das tardes quando chegava ao teatro para mais uma jornada de trabalho percebi no mural um cartaz do espetáculo "O Amargo Santo da Purificação". De imediato pensei: vou! Decidi antes mesmo de ver que a data estava dentro da nossa permanência na cidade e fora do nosso horário de trabalho. Verifiquei esses dois detalhes e a oportunidade permaneceu de pé. O teatro já me levou a muitos cantos Brasil a fora, mas nunca tive a felicidade de encontrar com o “Ói Nóis”, não até essa ocasião. Data e hora marcada eu estava no Elevador Lacerda, local da apresentação. Assisti o espetáculo e fiquei verdadeiramente tocado. Eu nasci no período da ditadura, mas quando comecei a adquirir consciência política esse negro momento da nossa história já havia passado. Mesmo não sendo uma testemunha presencial acabei vivendo muito do período repressivo por osmose, através das falas enfáticas do meu pai até o seu último dia de vida. Até a queda do "muro" ele foi um marxista convicto, depois não, esmoreceu das rubras ideias, mas sempre permaneceu crítico ferrenho de todo o período repressivo. Voltando ao que interessa. Fiquei bastante tocado com a apresentação e lembro que nesse dia familiares do Marighella, personagem retratado na cena, estavam na plateia. Quando tudo terminou Fernando me chamou para conhecer a Tânia. Mesmo no meio da confusão de fim de espetáculo ainda deu para bater um papo rápido. Fernando e Tânia na época eram conselheiros do Redemoinho. Aliás, essa apresentação foi antes do fatídico fim do movimento que ocorreria naquela mesma cidade poucos dias depois. Posteriormente ainda cheguei a assisti-los com o mesmo espetáculo no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Por fim, agora terei a oportunidade de conhecê-los bem de perto, de estar na casa deles e recebê-los em minha casa. De conhecer seus processos de trabalho e em troca mostrar como trabalhamos. Estou disposto e ansioso.